Diz que Seu Zé era figurinha carimbada na padaria Flor do Monte. Manhã de chuva ou de Sol, era só o pão começar a cheirar no forno, lá se via a careca de Seu Zé subindo a ladeira e brilhando de suor. Vinha arfando, as mangas da camisa enroladas até os cotovelos, os óculos amarelados e grossos na testa, nunca nos olhos. Parava na entrada da padaria e se persignava: a Flor do Monte ficava de frente a um cemitério.
—Aquele pingado com pão na chapa, Seu Zé? — Cumprimentava Luiz de trás do balcão.
Seu Zé se sentava no seu cantinho do balcão e esperava que Luiz lhe trouxesse o café da anhá. Luiz era filho do padeiro, o velho Manoel. Sim, o velho Manoel era português, tinha uma padaria e um bigodão, porque de vez em quando a vida segue os clichês das piadas de boteco.
No seu cantinho no balcão, Seu Zé comia em silêncio. Era da geração que não falava enquanto comia, mas não precisava falar naquele momento. O prazer que o pão fresco torrado na chapa com manteiga trazia ao velho ficava estampado em seu rosto negro, legível para quem quisesse ver. Só quando terminava de comer, se desfazia em elogios ao pão de Manoel.
—Esse Manoel é um gênio — ele dizia — Não tem o que me faça ficar sem comer esse pão!
Terminava o café, comprava um maço de cigarros e saía da Flor do Monte com um sorriso no rosto. Mas só depois de fazer outro sinal da cruz quando via o cemitério do outro lado da rua.
Luiz e Manoel não sabiam muito sobre Seu Zé além daquela rotina. Não parecia se importar com polícia, não falava de futebol, não reclamava de patrão, esposa ou filhos. Não era tímido, parecia até ser bem expansivo depois de alimentado, mas nunca ficava por perto o suficiente para que tivessem tempo para um papo. A única certeza que o padeiro e o filho tinham era que, entrava dia, saía dia, Seu Zé estava ali para seu pingado com pão na chapa.
Até o dia em que não estava.
Eu queria dizer que aquela foi uma manhã chuvosa, que o Sol se escondeu atrás de nuvens negras durante todo o dia, os pássaros não cantaram e que os cachorros uivaram em agonia, mas a verdade é que a natureza não tem tempo para sentimentalismo. Isso fica por conta das pessoas.
O cheiro de pão fresco inundava a padaria, mas Luiz não via sinal da careca do velho freguês. Deixou o balcão, foi até a esquina, mas nada de Seu Zé subindo a ladeira. Passou o dia apreensivo, a todo o momento consciente dos portões do cemitério do outro lado da rua. Não tinha o que se fazer. Acontecia.
Na manhã seguinte, a vida continuava. O cheiro dos pães frescos de Manoel enchia o ar da rua inteira. Luiz olhou para a ladeira pelas portas de vidro da padaria, mas Seu Zé não vinha de lá. Sua careca não brilhava com o esforço de subir a rua íngreme, e Luiz entendeu que não o veria mais. Resignado, suspirou e baixou a cabeça.
—Vê aquele pingado com pão na chapa — disse Seu Zé, que comeu quieto seu café da manhã, elogiou o talento do padeiro, comprou um maço de cigarros, se persignou e atravessou a rua de volta para o cemitério.
Fonte:
http://topensandoemler.blogspot.com.br/2016/09/to-pensando-em-contos-um-pingado-e-um.html
Fonte da Figura:
http://topensandoemler.blogspot.com.br/2016/09/to-pensando-em-contos-um-pingado-e-um.html
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