PARIS E SEUS CAFÉS
“Diante da xícara de café,
tagarela-se; ‘a conversação acompanha obrigatoriamente o café ou o chá, ela é
quase a sua verdadeira razão de ser.’ O café, mal acabara de nascer, já era um
café literário.”
Paris, e seus incontáveis cafés.
Todo o parisiense, seja ele de nascimento, de adoção, ou mesmo de coração,
conhece e reconhece Paris a partir dos seus cafés.
O (estabelecimento) café é aquele
companheiro fiel, de todo o dia, a quem a gente recorre sempre que pode. Na
alegria e na tristeza. Sozinho ou acompanhado. Nas manhãs corridas de antes do
trabalho e nos fins de tarde depois de um dia cansativo, pra ver a vida passar.
De preferência com uma taça de vinho na mão.
OS PRIMEIROS CAFÉS DE PARIS
Os primeiros cafés de Paris datam
de meados do século XVII.
Desde o momento em que surgiram,
eles gozaram de enorme popularidade entre os privilegiados a quem era permitido
frequentá-los: nos cafés, alguns elementos mais nobres da sociedade da época se
reúnem para discutir, conversar e conspirar, entre um gole e outro daquela
bebida, à época tão valiosa, de prometidos efeitos estimulantes.
“Outros sim, desde o início, é um
café político”. A afirmação é do antropólogo Jules Leclant, autor do
texto “O café e os cafés em Paris.” Segundo ele, rumores de que à
mesa dos recém-inaugurados cafés faziam-se críticas ao governo teriam chegado
aos ouvidos do rei Luís XIV, que indagara a um de seus conselheiros se não
seria conveniente “impedir seu funcionamento para o futuro.”.
Teria sido possível ao rei prever
a relação entre o desgaste do absolutismo, que chegaria ao auge durante a sua
regência, e a circulação de ideias políticas e filosóficas em cafés como o
Procope, cem anos mais tarde?
O olhar em retrospectiva para a
história poderia nos levar a crer que sim: Luís XIV, em meados de 1680, seria
então uma espécie de visionário: adivinhara e temera, com um século de
antecedência, o papel dos cafés na divulgação dos princípios e dos valores que
contribuiriam para a derrubada da monarquia na França.
Mas a história não é tão simples,
nem tão fantástica e previsível como algumas narrativas a fazem parecer.
A IMPORTÂNCIA DOS CAFÉS NA DIVULGAÇÃO DAS IDEIAS
Luís XIV não proibira o
funcionamento dos cafés, e o passar dos séculos os transformaria num dos
cenários mais característicos da paisagem parisiense.
Frequentado de início apenas por
grandes pensadores, ilustrados, artistas e personalidades da época, a
inauguração dos primeiros cafés na Paris do Antigo Regime já revela, no
entanto, alguns elementos de uma sociedade em transformação.
Ao contrário dos salões
literários, onde os integrantes da mais alta nobreza recebiam, nos ambientes
luxuosos de sua propriedade, apenas uns poucos escolhidos entre as mais
distintas famílias da aristocracia parisiense, nos cafés, o intercâmbio
político, literário e cultural podia acontecer entre um público mais
diversificado, num espaço público, o que possibilitava a crítica ao rei e à própria
nobreza, enquanto no espaço privado dos salões literários a crítica era
sacrificada em benefício da pura e simples adulação ao rei e a seus favoritos.
Daí a importância dos cafés na
divulgação das ideias subversivas e revolucionárias que abalaram as estruturas
da monarquia na França. Interessante, não é?
Nesse sentido, os cafés de
Paris são produto e, ao mesmo tempo, testemunhas das grandes
transformações pelas quais as sociedades europeias passaram.
É possível contar e compreender
melhor a história da cidade, e mesmo do país, a partir da observação do
movimento em seus cafés ao longo do tempo. A história social e das ideias
francesas também passa pelos seus cafés.
NO SÉCULO XIX
Na França de meados da década de
1850, muita coisa já havia mudado em relação ao tempo do absolutismo
monárquico.
Em pouco mais de cinco décadas os
franceses testemunharam a Revolução Francesa, a ascensão e a queda de Napoleão
Bonaparte, a restauração do absolutismo com Luís XVIII, a Revolução de 1830 e a
crise do governo de Luís Felipe, o rei burguês, em meio ao surgimento de
movimentos sociais como o dos operários e o das sufragistas.
Nesse mundo em transformação, já
se podia observar um declínio dos valores aristocráticos, que deram sustentação
ao Antigo Regime, e a sua substituição gradual por um novo conjunto de ideias,
características do grupo que chegava ao poder: a burguesia.
É nesse contexto que a presença em
lugares prestigiosos como os cafés vai se tornando, lentamente, mais diversa. À
medida em que a sociedade ia se transformando, a frequência dos e nos cafés
também ia sendo modificada.
Passam a ser admitidos ali os
cavalheiros de ascendência menos nobre, assim como algumas pouquíssimas
mulheres, observadas pelo público masculino com um misto de choque, curiosidade
e descrença, como é possível depreender da tela de Ernest Ange Duez (1843-1986)
ambientada no LeDoyen, restaurante tradicionalíssimo que funciona até hoje no
8º arrondissement e ostenta as três desejadas estrelas do guia
Michelin.
Na virada do século XIX para o XX
a cidade de Paris já colecionava algumas centenas de cafés, espalhados
pelos quartiers mais populares do momento: entre eles, o Le Guerbois,
o Le Dôme, o Closerie des Lilas, o Café de la Paix, além dos hoje
famosíssimos Les Deux Magots e Café Flore.
De acordo com o jornalista
francês Michel Bradeau, foi nesse período que “A vida intelectual
desceu do morro de Montmartre, atravessou o Sena e se instalou na “Rive
gauche”, a ribanceira esquerda, e primeiro em Montparnasse.”
A cidade, modernizada pelas
reformas haussmanianas e vivendo o auge do período de euforia conhecido como
Belle Epoque, acolhia um número cada vez maior de imigrantes e de artistas de
todos os matizes, atraídos pela aura inspiradora da cidade luz.
NO SÉCULO XX
Ao longo do século XX, muito se
discutiu, se produziu e se testemunhou à mesa dos cafés parisienses: artistas,
intelectuais, escritores, mecenas, homens de destaque e pessoas comuns ali
compartilharam com angustia as notícias da 1ª Guerra Mundial, as agruras dos
anos de 1920 e o aumento das tensões e rivalidades dos anos de 1930, marcados
pela ascensão dos fascismos e pela iminência de uma nova guerra.
No Flore, Simone de Beauvoir e
Sartre debatiam intensamente, e dividiam entre si as suas hipóteses sobre o
porvir: aos relatos e opiniões mais pessimistas, Beauvoir contrapunha uma
crença quase inabalável na capacidade de os países europeus solucionarem a
crise no continente, cada vez mais escancarada pela política militarista de
Hitler. A invasão da Polônia pelos alemães, poucos anos depois, seria o marco
final daquele período de crise e incertezas conhecido como o entre guerras.
Novamente, era a guerra.
E foi assim que, ao longo dos
séculos, o café foi sendo convertido em verdadeiro personagem da história
francesa: mais do que um lugar de memória, de convívio e de socialização, o
café foi testemunha de um processo histórico diversificado, cujas complexidade
e riqueza ainda nos apaixonam.
Nos cafés viveu-se, escreveu-se e
ainda se escreve a História, e todos nós, que os frequentamos, somos seus
protagonistas anônimos, ao lado dos tantos grandes vultos do passado que
despertam, além de admiração, a nossa vontade voltar a eles. Sempre. Uma vez
mais.
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