Etiópia e Iêmen disputam há séculos a origem da bebida mais popular do mundo
Os etíopes contam que o café teria sua origem nas montanhas da Abissínia, atual Etiópia. Já os iemenitas consideram que o berço da bebida mais popular no mundo teria sido as montanhas de seu país, chamadas de Arábia Felix, na margem oriental do Mar Vermelho. Uma lenda árabe relata que pastores teriam notado que as cabras, quando comiam os frutos vermelhos do arbusto, ficavam excitadas e não conseguiam descansar à noite.
As evidências históricas revelam que os primeiros consumidores teriam sido, de fato, monges muçulmanos sufis em meados do século XV no Iêmen. Por experimentos ou por tradição oral, os religiosos teriam comprovado que a bebida preparada com a semente tostada e moída deixava suas mentes mais estimuladas e, assim, podiam cantar e dançar por horas a fio durante seus rituais em busca do contato com o mundo divino. Em algumas décadas, graças ao importante porto iemenita de Mokha, a bebida cruzou fronteiras e se tornou famosa em todo o Oriente Médio e na Europa.
A Etiópia também possui bons argumentos para comprovar que o café foi descoberto em seu território. O local de origem teria sido as montanhas da antiga província Kaffa, no oeste do país – o nome Kaffa estaria, obviamente, ligado à planta. Outra lenda explicaria a saída do grão para o Iêmen: um místico árabe de visita à Etiópia teria observado que certas aves ganhavam uma vitalidade extra quando comiam as frutinhas vermelhas do arbusto. O religioso teria feito o mesmo que as aves – mastigado as sementes – e, assim, percebido as propriedades estimulantes do produto, que rapidamente cruzou o Mar Vermelho para ser plantado nas montanhas do Iêmen.
Nunca saberemos ao certo se a descoberta das propriedades da planta Coffea arabica ocorreu no lado ocidental africano ou oriental árabe do Mar Vemelho, mas o café continua sendo cultuado na Etiópia como uma bebida quase sagrada, com direito a um longo ritual, a Cerimônia do Café.
Não há residência, hotel, pousada, restaurante e até mesmo aeroporto que não tenha um pequeno estande, quase no nível do solo, oferecendo um café preparado na hora. O local é decorado com folhas verdes no piso, possui um incensário para dar um bom aroma ao ambiente e uma figura obrigatória, a Coffee Lady, a Senhora do Café, sempre vestida de forma tradicional.
O ritual inclui desde a torrefação artesanal dos grãos de café até a degustação em pequenas xícaras, parecidas com as nossas brasileiras, mas sem alças. Convidar alguém para participar de uma Cerimônia do Café significa manifestar respeito. Mas o ritual pode levar algum tempo, pois é essencial que o convidado tome, no mínimo, três xícaras, sendo que a terceira rodada é considerada a mais importante.
Em uma época em que os cafés ocidentais são preparados apenas por máquinas sofisticadas – e sempre às pressas –, considero a cerimônia da preparação do café artesanal etíope como um antídoto ao estresse do mundo moderno.
A única vez que tive a ocasião de ver e fotografar uma Cerimônia do Café do início ao fim foi no vilarejo Turmi, no vale do Rio Omo, sul da Etiópia. À espera da abertura do mercado semanal, eu fazia hora numa varanda aberta de uma modesta pousada. Os locais, sem um pingo de afobação, sugeriram uma rodada de café para que o tempo passasse mais rápido.
A ideia não me agradou tanto. Minha memória retrocedeu ao tempo em que eu era um menino de 7 anos. Logo na primeira semana de aulas, quando cursava o 1º ano primário no Instituto Souza Leão do Rio de Janeiro, uma professora me obrigara a tomar café com leite no lanche vespertino. O sabor era totalmente novo para mim, pois minha mãe achava que crianças não deveriam tomar bebidas estimulantes. Detestei o gosto do café misturado com leite e, por tabela, do café. E nunca mais tomei uma gota.
Respondendo aos pedidos dos visitantes locais, aparece uma mulher alta e sorridente. Ela veste uma blusa de alça e uma calça larga, ambas feitas com o mesmo tecido de flores de cor vermelha e turquesa. Seus olhos negros amendoados lembram as imagens dos querubins do teto de uma igreja de Gondar, no norte do país. É a Senhora do Café, seu nome é Elsabet.
Nas mãos traz os apetrechos para o ritual e um pequeno forno de cerâmica, em forma circular, com brasas quentes. Coloca uma placa de ferro, também redonda, sobre o calor ardente e retira de um saco uma caneca de grãos secos de café para jogá-los sobre a placa. Movimenta os grãos com uma colher para não deixar nenhum deles parados no mesmo lugar por mais de poucos segundos. Joga algumas gotinhas de água sobre a placa e o ruído saltitante do líquido se evaporando chama a atenção de todos os visitantes.
A Senhora do Café começa a preparar o ritual – o primeiro passo é sempre a torrefação das sementes em frente aos convidados (Foto: © Haroldo Castro/ÉPOCA)
À medida que os grãos perdem sua cor gris-esverdeada e ganham um tom bronzeado, um aroma forte passa a tomar conta do ambiente. Quem já tostou café de forma artesanal reconhece a fragrância. Posso não gostar do gosto, mas o perfume do café torrado embriaga qualquer um, inclusive eu.
Elsabet cuida de seus grãos até que eles ganhem uma coloração vermelho-escura e depois um marrom mais denso, quase negro. Ela retira a placa da brasa e, enquanto o aroma típico continua a preencher o ambiente, levanta-se para buscar um pilão de madeira. Regressa e derrama as sementes torradas no instrumento estreito.
Necessitando de um recinto mais amplo, ela deixa a varanda e encontra um espaço aberto no pátio, a uma dezena de passos do grupo de visitantes. Segura o pilão com vigor e, com um movimento com cadência, ela passa a movê-lo para cima e para baixo, mantendo sempre o mesmo ritmo. Concluída a moagem, ela derrama o pó do café em um prato fundo e o leva de volta à varanda, junto ao fogo.
Sobre o fogo, lá está jebena, a cafeteira de cerâmica artesanal, com seu pescoço longo e fino. Em poucos minutos, a água entra em ebulição. Elsabet retira a jebena das brasas e, com cuidado, faz o pó do café penetrar pelo pequeno orifício. Ela tapa a jarra e deixa o recipiente no fogo por mais alguns minutos.
É sempre o olor que anuncia quando a cocção está pronta. No momento adequado, ela retira a jebena das brasas e despeja o líquido negro em cada uma das xícaras brancas apoiadas em uma bandeja. O fino jorro cai de uma altura de um palmo, criando um pouco de espuma. Sua mira é certeira. Com um sorriso nos lábios, ela oferece uma xícara a cada visitante. Eu agradeço e aceito. Levo a xícara ao nariz e aspiro profundamente o aroma para me lembrar da cerimônia. Mas não bebo: a imagem da professora me forçando a tomar café quando menino ainda é mais forte!
Etapa final da cerimônia: oferecer uma pequena xícara de café a todos os presentes (Foto: © Haroldo Castro/ÉPOCA)
Texto extraído de: https://epoca.globo.com/sociedade/viajologia/noticia/2017/01/cerimonia-do-cafe-mostra-importancia-do-grao-na-sociedade-etiope.html
Fonte Imagem: https://epoca.globo.com/sociedade/viajologia/noticia/2017/01/cerimonia-do-cafe-mostra-importancia-do-grao-na-sociedade-etiope.html
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