O aroma do pó de café misturado diretamente na água fervida, sem qualquer filtro, desperta a casa de Nohad El Ain e do seu marido Osmar, em São Paulo, há muitos anos – desde a época em que suas filhas, Patrícia e Daniela, ainda moravam ali com eles, e nem tinham idade para saborear a bebida. “Esse perfume invade os cômodos e parece que chama as pessoas da família para se reunirem em volta da mesa”, conta a matriarca, descendente de libaneses e sírios.
Feito diariamente e servido com muito
amor para as visitas — e agora também até para os netos (o de 12 anos pede para
a avó!), o café turco (ou árabe, como Nohad prefere chamar) é uma herança
valiosa para esta família. E eu comprovei, na prática, que, mais do que aguçar
o paladar e acordar o corpo, ele tem tradição suficiente para despertar
memórias sensoriais e afetivas milenares em quem decide prová-lo.
Nohad tem a receita do seu
cafezinho delicioso anotada em uma velha folha de papel, e o texto escrito à
mão revela o passo a passo de uma das formas mais antigas de se preparar cafés
no mundo. É mais uma relíquia, porque o hábito fez o monge há muito tempo.
“Aprendi com minha mãe, aos 9 anos, e já ensinei as minhas filhas desde
pequenas”, conta.
Eu fui convidada a trocar o meu
espresso diário pelo cafezinho da dona Nohad e entendi por que o “turkish
coffee” (como é mais conhecido mundialmente) é considerado Patrimônio da
Humanidade pela Unesco.
São sempre muitas histórias (e
curiosidades) por trás de uma xícara. E o PDG Brasil decidiu contar
algumas delas aqui sob dois olhares bem especiais: o olhar carinhoso de uma mãe
que faz questão de ensinar seu jeito de passar o cafezinho para as próximas
gerações (e que ficou “famosa” por fazer o melhor café árabe da família!), bem
como o de uma especialista, como Cleia Junqueira, diretora de cafés da Coffee Planet,
nos Emirados Árabes Unidos, e juíza sensorial do WBC — que já experimentou e
avaliou o café turco dos mais prestigiados e premiados baristas.
Muitos nomes, o mesmo diferencial
O cafezinho ao estilo do que é
feito na casa da Nohad também é servido desde 1555 nas casas e cafeterias da
Turquia, da Grécia e em algumas regiões do Oriente Médio e norte da África. Por
isso o café turco também é conhecido como café árabe ou marroquino ou até mesmo
grego. Mas será que a variação dos nomes altera o produto?
De acordo com a especialista Cleia
Junqueira, o diferencial mais marcante em todos eles – em comparação
com os nossos brasileiros espresso e coado, por exemplo – é basicamente o modo
de preparo: “a longa infusão com o café em contato com a água até o ponto de
fervura”. Mas ela ressalta que a moagem também costuma diferenciar os cafés
turco, marroquino e grego do café árabe (preparado por Nohad).
“Café turco (assim como suas
variações de nome, grego e o marroquino) tem moagem bem fina como farinha de
trigo. Já o café árabe tem moagem mais grossa, e a torra é bem clara, similar à
canela em pó ou até mais clara que isso, dependendo da região”, explica. “O
café árabe é mesmo mais leve, e o aroma permanece em nosso paladar”, completa
Nohad, lembrando que em sua primeira experiência de preparo, aos 9 anos, ela
acabou deixando a bebida bem aguada e que precisou de treino para acertar a
quantidade de água.
Utensílios que fazem a diferença
Similar à cafeteira italiana
(aquela que vai direto na boca do fogão para preparar e servir o café forte que
os italianos gostam), há também uma versão desse tipo de utensílio para o
preparo do café turco. É o Ibrik, que pode ser de metal (geralmente cobre) e de
cerâmica. Mais bojudo e baixinho do que a italiana e com um cabo comprido,
parecido com o de uma panelinha, essa cafeteira costuma ser bastante indicada
para uso doméstico e, dependendo do material, costuma ter um custo
relativamente baixo.
Cleia Junqueira lembra que com o
Ibrik é possível fazer o café turco à moda antiga. “É possível usá-lo na
areia quente ou até em um fogareiro pequeno pelo fácil manuseio. Mas, claro,
também pode ser substituído por uma leiteira pequena”, garante. Nohad dá outra
dica.
Ela prepara o cafezinho árabe no
bule e, na hora de servir, não dispensa outros dois utensílios: a bandeja árabe
da família, que já é uma tradição, além de seus jogos de xícaras delicadas e
específicas para esse tipo de preparo – porque ajudam a assentar e manter a
borra de café no fundo. Também ensina: “o café árabe é servido muito quente.
Precisa ser tomado devagar, degustado. Assim, enquanto esfria, dá tempo de o pó
baixar mais um pouco”.
Aromas, sensações e sabores únicos
O preparo diferente do que muitos
de nós brasileiros estamos acostumados, seja em casa ou mesmo nas cafeterias
(difícil encontrar as especializadas), faz com que a experiência com os cafés
turco/árabe seja uma viagem sensorial e até mística, do começo ao fim.
Uma aventura para olfato, paladar
e mente, desde o perfume da mistura do café na água fervida (ainda mais se
acompanhada de algumas especiarias), passando pelo ritual de aguardar para que
a maioria do pó desça ao fundo do Ibrik ou do bule até a hora de saborear um
pouco do pó nas papilas gustativas e também de notar os desenhos inusitados que
a borra do café forma no fundo das xícaras.
Sobre este último item, aliás,
existem até especialistas na arte milenar de interpretar essas imagens
(cafeomancia) e de usar as borras em tatuagens.
A filha mais velha de Nohad, a
fonoaudióloga Patricia Di Risio, que não resistiu e foi tomar o café que a mãe
dela preparou especialmente para essa reportagem, conta que sua família não tem conhecimento sobre essa leitura da borra,
mas eles não deixam de dar uma olhada. “De vez em quando, nossa família se
diverte com alguns formatos curiosos”, conta.
E o melhor: como cada família tem
um segredinho na receita que só é passado entre as gerações, cada experiência
com a bebida pode ser mesmo única. Por exemplo, a melhor sensação é com açúcar
ou sem? O ideal é acrescentar ou não especiarias muito utilizadas no preparo,
como cardamomo, canela e anis estrelado?
Para Cleia, não há certo nem
errado. “Tudo depende do costume, da tradição familiar”, resume. Mas talvez uma
grande preocupação de quem está começando a experimentar esse tipo de café seja
mesmo a escolha do pó (de preferência ultrafino e moído na hora).
“Café turco em geral leva café do
tipo Rio Minas na composição do blend. O sabor químico medicinal e fenólico
agrada ao paladar de quem está habituado a essa bebida. Árabes moem o café em
casa ou pedem para o pessoal moer nas cafeterias próximas. Em São Paulo, o
Empório Santa Luzia tem café turco para vender. Hoje em dia, aliás, existem
cafés especiais, com a torra mais clara, como os turcos torram. Eu gosto
desses”, revela a especialista.
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