Um gole de
Galeano no Café Brasileiro (2014)
Montevidéu tem
seus próprios ventos, que se parecem, em muito, com crônicas de cidade pequena.
Além de estreita, antiga. Onde prédios velhos se tocam no alto do céu e olhos
se cumprimentam nas praças regadas de folhas. Cafés que falam muitas línguas
recebem durante o dia linguagens de todas as partes. São gestos de histórias
vizinhas contracenando com sentimentos interioranos que a capital uruguaia
abriga em si. Não deixam de captar os olhares, as vozes, as vidas.
Uma das ruas mais antigas de Montevidéu é também a que abriga
o Café Brasileiro, um dos espaços mais charmosos de Ciudad Vieja,
com arquitetura típica do século 19. Ali, onde o vento do lado de fora parecia
fazer a curva para o continente, foi que esperamos pelo encontro com Eduardo
Galeano, um dos maiores escritores de nossa América Latina.
Enquanto contávamos os minutos para sua chegada, as
fotografias nas paredes revelavam a proximidade que o autor tinha com o local.
Eram inúmeras fotos suas. Não seria, então, coincidência estarmos ali, em um
lugar escolhido por ele, naquela manhã de sábado. Devia ser seu mais
aconchegante quintal, no qual nos acomodamos logo, sem saber se pelo apreço
visual da madeira fria que estruturava o local, ou pelo cheiro de um café tão
tipicamente próximo ao nosso. As duas coisas, talvez.
Galeano chegou acompanhado de sua filha Florência, e entrou
sorrateiro, sem que escutássemos o barulho de seus passos. Quando nos demos por
encontrados, tomou-nos as mãos e cumprimentou-nos carinhosamente.
“Veja se isso aqui não parece um romance policial”, atestou.
“Quando olhei vocês dois aqui sentados, disse logo à Florência: são eles!”,
sorriu com um humor de quem se sente em casa. Não demoramos a deixar nossos
olhares curiosos de tudo focarem em seus olhos azuis, capazes de iluminar todo
o ambiente.
Antes mesmo de o café chegar, contamos a ele o motivo que nos
levara ali – uma tenra admiração junto à vontade de estabelecer conversa com
vozes e olhares. O que falaríamos a um jornalista que já havia concedido
inúmeras entrevistas a tantos veículos? Que a conversa fluísse, pois. Que
pudéssemos assentar em um sábado de sua vida e compreender o que as histórias e
a despretensão de estar ali, junto a ele, nos trouxessem às mãos.
O primeiro gole de cappuccino veio quando
comentamos sobre as propagandas políticas que vimos a caminho do encontro, e
sobre as eleições presidenciais que também acontecerão esse ano no Uruguai.
Galeano não demorou a enfatizar suas percepções sobre o assunto, apontando, com
os dedos pouco acima da mesa, para as ruas que cercavam o Café.
“Eu não entendo a política uruguaia”, afirmou. “A divisão
partidária me confunde. Aqui, dentro de um partido que se assume como
‘esquerda’, existem frentes conservadoras e outras de extrema esquerda que
disputam entre si. Então, antes do embate eleitoral, existe uma discussão de
quem é que lidera o partido. Nunca vou entender isso”, completou, afirmando
ainda a dificuldade que há em se estabelecer uma linha de governo dessa forma.
Quando se tratou de política, o autor de As Veias
Abertas da América Latina não ousou deixar de lado o peso histórico
das ditaduras militares que se espalharam pelo continente no século 20. Jornalista exilado por duas vezes, Galeano esteve no Brasil
em anos de chumbo, quando trabalhava para um jornal de Montevidéu, e seu editor
pediu que escrevesse sobre a realidade social brasileira com a ditadura.
“Ele pediu que eu fosse ao Brasil, mas, por ter ido diversas
vezes ao país, disse que o faria do Uruguai mesmo. Insistiu e eu fui até o Rio
de Janeiro. Queria que eu visse o modo como as pessoas viviam a ditadura nas
ruas. O que mais me chamou a atenção foi uma frase em um muro, que pedia que o
governo brasileiro ‘fosse logo entregue nas mãos de Charles Elbrick’,
embaixador estadunidense na época”, assinalou, rindo do quanto aquela frase era
certeira ao resumir suas impressões sobre aquele período. “Aquilo materializava
a insatisfação diante dos rumos que o país tomava”, concluiu.
Observávamos a naturalidade com que Galeano enunciava. Era
terno ao fazê-lo. Não havia dúvidas de que sua sutileza com as palavras,
expressa principalmente em O Livro dos Abraços, que contou-nos ser
seu preferido, também se refletia na calma e tranquilidade de sua fala.
Ao se tratar de anos ditatoriais, contamos o quanto veículos
brasileiros têm trazido à tona as memórias da resistência com relação ao regime
militar. Citamos o exemplo das histórias que retratam a realidade das
universidades brasileiras na época e o quanto esses espaços, que sempre foram
considerados centros de resistência e formação ideológica social, foram
claramente reprimidos pelo governo.
Havia temor ante o crescimento de ideias opositoras, o que
culminava na infiltração de pessoas ligadas à ditadura no espaço universitário
e a exclusão de alunos e professores considerados rebeldes. Hoje, a
sobrevivência destes locais representa um símbolo de resistência àquele
governo. Sobre isso, relatou a maneira similar com que a ditadura uruguaia agiu
naqueles anos.
“A MEMÓRIA TEM MÃOS”
“A ditadura uruguaia agiu de forma parecida. Este Café, por
exemplo, foi reconstruído pelas mãos da memória. Porque a memória tem mãos. Por
três vezes, esse espaço foi destruído pela ditadura. Era considerado um local
de típico encontro da classe intelectual daqui. Vinham com um caminhão durante
a noite e desmanchavam o lugar. Arrancavam os pisos, retiravam as mesas e
cadeiras, roubavam os lustres. No entanto, os frequentadores sempre tinham a
disposição de reconstruir o Café através de suas lembranças em fotos e fatos”,
contou-nos com brilho nos olhos que ora miravam em nós, ora nas paredes com
fotografias de velhos conhecidos.
Lembrou-se também de uma vez que esteve em Leningrado – sua
filha o corrigiu atentando ao atual nome, São Petersburgo –, quando as pontes
da cidade, que foram destruídas pela guerra, estavam sendo reconstruídas por
moradores através de fotografias. A memória parecia dar-lhe as mãos, ali.
O suspiro forte das lembranças abriu espaço para que nos
entregasse dois de seus livros, Mulheres e Dias e
noites de amor e de guerra, que trouxera especialmente para nos presentear.
Assinou com doçura. “Abraços, Galeano”, desenhando um porquinho abaixo de seu
nome. Também fez isso nos livros que trouxemos para receber sua assinatura.
Quando perguntado sobre a escolha desse animalzinho, não
demorou a dizer que “alguns escritores escolhem dragões e serpentes como
mascotes de suas obras e assinaturas. Eu escolhi o porquinho, pois ninguém o
havia escolhido. Gosto do porquinho”. Sua graça fez com que todos à mesa
sorrissem.
O relógio batia meio-dia, mas o charme matinal uruguaio não
nos tirava o sentimento de que ainda pareciam nove da manhã. Galeano
aproximou-se da mesa tanto quanto se achegou a nós. Perguntou-nos onde vivíamos
no Brasil. “Vivemos entre São Paulo e Rio de Janeiro”, respondemos. Como
conviesse, perguntamos se lhe agradavam cidades como as nossas, mas nosso
Eduardo foi enfático ao negar o apreço às grandes metrópoles.
“Não gosto de cidades grandes, como São Paulo. Elas têm caos
demais. Gosto de Montevidéu porque consigo compreendê-la. Não se pode
compreender uma cidade como São Paulo. Por isso escolhi viver aqui e sempre
para cá voltar”, disse. Entreolhamo-nos pelo tempo em que o termo compreensão
ressoou no ambiente.
Eduardo foi se levantando com os presentes em mãos.
Despedimo-nos com um cumprimento ainda mais carinhoso que o da chegada. “Ainda
vamos nos rever”, disse, por fim. “As mãos da memória sempre trabalham por
encontros assim”, quisemos entender. Agradeceu com os olhos. Agradecemos. Não
como quando um livro termina por nos inspirar, mas, quando um novo nos segura
logo na primeira página. “Até breve”, sentimos.
Texto extraído de: https://outraspalavras.net/outrasmidias/um-gole-de-galeano-no-cafe-brasileiro/
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