Por Paulo Vinícius
Duas das figuras que mais
contribuíram para que eu me tornasse um internacionalista e pudesse me
encontrar com a América Latina foram Mercedes Sosa e Pablo Neruda. Este pela
prosa poética vertida em Confesso que Vivi, e aquela, "la negra", por
tudo de arrebatador e pungente que há em seu repertório irretocável.
Como se hoje fora, recordo da
saudade que senti de Neruda – estranha nostalgia de quem não se conheceu,
lastreada em poesia. Tal sentimento se intensificou ao ouvir na voz de Mercedes
Sosa os zambas, chacareras, os versos de justiça e amor, voando pelo espaço
aninhados naquela voz vibrante, forte, inconfundível.
Foi assim, exposto a esta dupla influência que me vi repentinamente
órfão da América Latina, lastimando-me por não a ter conhecido antes,
inconformado e intrigado ante o paradoxo em que a proximidade geográfica não se
faz amizade, conhecimento mútuo, identidade. E desde então isso mudou a maneira
como me situava no mundo. Descobrira-me, malgrado tanto lixo que se nos
empurra, enfim, latino-americano.
E o que Mercedes Sosa cantou me ensinou tanto! Meu portunhol bem
ajambrado foi aprendido com ela, cantando e entendendo a rebeldia e o amor, a
ânsia por justiça e a grandiosidade com que aquela tucumana afirmava nossa
origem comum, nossa irmandade de história, povo e sonhos.
Ela dizia a simplesmente e dura realidade, que "a esta hora
exatamente há uma criança na rua". Reinventou a geografia ao afirmar que
"um verde Brasil beija meu Chile de cobre e mineral". Lembrou-nos em
meio a tantas vicissitudes que "tudo muda e mudarmos não é estranho"
ainda que "não mude meu amor por mais distante que eu esteja, nem a
lembrança nem a dor do meu povo, da minha gente". Ademais, com os versos
de Atahualpa Yupanqui, definiu para mim a amizade, ao mostrar-nos que temos
"tantos irmãos que nem os podemos contar/, no bairro, na montanha/, no
pampa e no mar/ cada qual com seu trabalho, com seus sonhos cada qual/ com a
esperança adiante e as recordações lá de trás", "tenho tantos irmãos
que nem os posso contar e uma irmã muito linda que se chama liberdade".
Versos assim se cravam no peito se os canta como ela cantava, ao
clamar às massas empobrecidas, "irmão, dá-me a mão, venha comigo buscar
esta coisa pequenina que se chama liberdade. Esta é a hora primeira e este é o
justo lugar, em que com tua mão e a minha, irmão, havemos de começar. Olha
adiante irmão, tua terra que te espera, sem distâncias nem fronteiras que a
afastem de tua mão, sem distâncias nem fronteiras, nesta hora primeira em que o
punho americano marque o rosto dos tiranos e a dor enfim vá embora".
Por tudo isto, quando ela veio a Brasília em 2008, senti que enfim
chegava a oportunidade – que até desacreditava – de ouvi-la ao vivo,
oportunidade que provavelmente fosse a última. E foi como um reencontro, essa
sintonia tão estranha de fã, quando a ouvi erguer-se por cima da evidente
fragilidade física pelas palavras de carinho e a voz inacreditável que venceu o
tempo. E do meu lugar no Centro de Convenções Ulisses Guimarães, depois de ir
ao Chile, Cuba, Paraguai, Bolívia, Nicarágua e Venezuela, depois de ver os
ventos de mudanças tão ansiados em seus versos se fazerem realidade, pude
ouvi-la frente a frente, a dizer tão bem do Brasil, de nosso povo, cantando
nossa música, aquela irmã argentina a declarar um amor tão sincero ao nosso
país. Não foi em vão.
E agora que ela partiu, em paz consigo e com seus sonhos de uma
intimorata e bela América Latina, não posso pranteá-la, apenas. Tenho na
verdade é de lhes sugerir o único tributo verdadeiro para uma pessoa que dizia
que "se cala o cantor, cala-se a vida, porque a vida, a vida mesma é
toda um canto". Não podemos é permitir-nos não ouvi-la, pois assim
permanece viva, tão necessária que é a iluminar os caminhos singulares em que a
arte nos faz entender com uma profundidade total esta irmandade
latino-americana, este amor aos oprimidos e o ódio às injustiças.
Conheçam Mercedes Sosa e partilhem do legado caudaloso de sua obra, das
lições e do prazer de ouvi-la cantar, da poesia tão bem escolhida por uma
intérprete que sabia o que dizer à mente e ao coração, uma irmã tucumana,
argentina, latino-americana que, como a vida, pôde nos dar tanto.
Fonte: https://vermelho.org.br/coluna/gracias-mercedes-que-nos-ha-dado-tanto/
Fonte da Figura: https://www.youtube.com/watch?v=f59-ecN2FYg
Fonte da Figura: https://www.youtube.com/watch?v=f59-ecN2FYg